Querido diário,
O miúdo tem aulas na Telescola de manhã. Na primeira semana também assisti às aulas, achei-as tão giras e fofas… Até às férias da Páscoa, o professor dele enviava os trabalhos e informações para o meu mail. Estava TUDO em dia.
Acordo o petiz, meto-o em frente à televisão e ponho-lhe o meu relógio despertador do lado. O intervalo de 10 minutos é malvado, que o rapaz gosta de zapping. Eu já nem vejo as horas para o mandar mudar de canal. Ele tem de ser responsável.
– Que aula é esta?!
– Educação Física.
– E estás deitado?!
– Oh, mas eu acordei há bocado… – Dane-se. Saio, vou às compras, corro, regresso e o piqueno ainda está deitado no sofá a ver TV. Às vezes, ouço-o papaguear, a responder aos professores. Às sextas, até canta na aula de Inglês. Menos mal.
Tenho 4 contas de mail, duas delas a receber e-mails ao magote. O PC apita no escritório e o telemóvel apita algures. O Pai Natal deu-me um relógio que fala(va) comigo. Desliguei-o, era o terceiro a apitar! Eu, que mesmo sendo (muito) surda, que calcorreio a internet para comprar chinelos que não façam chap-chap, tenho agora a casa cheia de pi-ri-ris que me põem tola. Moramos num T3, o relógio dizia-me que estava a fazer uma média de 6.500 passos por dia (juro!), agora já o dispensei destes elogios.
Com as aulas em Ensino à Distância (E@D), o agrupamento criou uma conta de e-mail para o meu filho. NÃO! Configurei-a no PC dele, pelo menos esta conta não apita… Hoje, de manhã, tinha N mensagens não lidas (não vos digo quantas, senão ainda me aparece a CPCJ cá em casa!). Imprimo 1-2 fichas por dia e mando-o ver os vídeos que o professor publica:
– Vê com MUITA atenção para não teres dúvidas! – oh era… Ora são os pontos cardeais, os pronomes pessoais e possessivos e… o catano! E as aulas de Inglês?! Já não falo das fichas, do “Find, circle and write” vs “Mãaaaeeeee qué qué pa fazer aqui?!”, as aulas “síncronas” desta disciplina são uma animação. Diz a professora:
– Tuuuuuesssday! Vá, escrevam no chat. Tuuuuuesssday!
Estou a trabalhar no meu computador e o piqueno começa a saltar na cadeira. Ai ai ai, aflito, não sabe escrever. Pego num post-it e rabisco na minha letra de médico.
– Não entendo nada da tua letra! Não é assim que se escreve! (...) Onde está esta letra?! – vou-me ao teclado, escrevo eu e… ENTER. O meu assistente suspira de alívio e diz a professora:
– Well done Miguel! – e o rapaz fica inchado de orgulho.
– Mãaaeeee, olha, olha… o Martim escreveu mal!
– Grrrrsss!
O raio das fichas acumulam-se. Meti tudo numa só pasta onde reina a promiscuidade. Passo-lhes a vista na diagonal e, às vezes, quase tombo:
– O que está aqui escrito?! Lê, se faz favor!
– (…) baixa…
– “Baixa” e tu copiaste “baicha”!
Estou no computador e tenho uma panela ao lume. Se fosse um refogado queimava, mas da panela nunca me esqueço. Os gadgets de cozinha têm todos de chamar por mim, requisito essencial cá em casa. Estou a fazer uma ficha de programação em C/C++, no Google Forms, para os alunos da minha Direcção de Turma, enquanto esmiúço os vídeos que os mandei ver.
– Mãe, mãe. Olha este vídeo de Estudo do Meio, é tão bonito! Anda ver! – tiro os phones e vou ver o que se passa.
– Oh filho, não posso…
– Mas o vídeo é tão lindo e o professor até escreveu aqui para o vermos na companhia dos familiares… – vou espreitar o vídeo: basicamente é algo como “Portugal de Norte a Sul”, em fotografias ao som de Pan Pipes Moods! HELP! A criança ainda me tenta persuadir mais 2 vezes mas não consegue. Safei-me.
Posto isto, é hora do almoço. Aliás, já passa da uma da tarde e, ao lume, só tenho a panela do doce. É a hora dos gadgets e rápido faço qualquer coisa. Eu abocanho tudo em 5 minutos (juro!), o rapaz demora 2 (DUAS) horas. Sim, que às 14:30 tem aula com o professor titular e o demónio ainda está a mascar! Não, não herdou o meu gene, na minha casa nós comíamos TUDO e de TUDO.
Passo por ele nas minhas 1001 voltinhas, depois de ter reclamado 10 vezes, e enfio-lhe, irada, uma colher de arroz pela goela abaixo. Ele reclama, que sabe comer sozinho. Aproveito e deixo um garfo de comida já preparado para içar… Regresso na minha volta número 1011 e o garfo ainda lá está. Enfio-lhe mais umas garfadas e já vou na volta 1499, as últimas ele come, mas sob negociação.
– Vais para a aula agora e depois vais acabar de almoçar!
O petiz vai para a aula, põe os phones e eu fico a trabalhar no meu posto, do lado dele, sempre no vaivém dos tachos.
– Mãe, mãe olha, olha Londres!
– É o professor que está a mostrar?
– Não, sou eu que estou a pesquisar no Google.
– Grrrrs! Está atento à aula, ouve o professor!
– Sim, mas eu consigo fazer as duas coisas!
Estou na cozinha a enfrascar e o silêncio reina nesta casa, não há menino… O que é suspeito, enquanto uma aula dele decorre. Vou ver: está a jogar no computador!
– Mas eu estou a ouvir o professor! – e voa uma sapatada e ele faz “fuum” amuado.
Meu querido diário, confesso, uma vez ou outra, digo um palavrão. Não abuso, mas saem-me! Estes dias, por sugestão de uma série do Canal Disney, o miúdo lembrou-se de implementar a “Caixa dos palavrões”… Já vou com um saldo negativo de mais de 20€! Mas o bandido anda a contabilizar palavras como “catano” e “credo”. Da parte dele também tem valores em dívida, por frases como “Cala essa boca” e “já disseste isso 100 vezes”. Prometo, um dia destes vou fazer o reset à caixa e levo a coisa mesmo a sério.
A colega de Física e Química enviou-me um mail, quatro malandros não lhe enviaram o trabalho de recuperação do último módulo, a data limite é “amanhã”, vão chumbar. Ser Directora de Turma em E@D é dose: mando um mail aos artistas, insulto-os de mandriões e ameaço-os que vou ligar aos encarregados de educação. Em rodapé, ainda deixo uma nota a dizer que, quando a pandemia passar, não lhes dou nenhum abraço, mas sim uma carga de porrada. Respondem-me logo, estão a “ultimar a tarefa”… E passaram ao módulo!
O Luan é um bom menino. Nas aulas, ainda presenciais, acumulava faltas aos primeiros tempos da manhã, ficava a dormir depois dos pais saírem para trabalhar. Em E@D, está em casa e não “vai “ às aulas… Ligo à mãe, “Sim professora, vou falar com ele”. Volto a ligar à mãe, que passa o telefone ao pai, “Sim professora, vou falar com ele”. Não tem PC, tem telemóvel e internet, mas continua a não “ir” às aulas...
Há dias que tenho 2 a 2:30h de reuniões de escola. Eu, plantada no PC, e o piqueno ao meu lado. Tenho olheiras até ao fundo a bochecha.
– Mãe, como é que se chama a nossa galáxia?! – por instantes, pergunto-me se “a nossa galáxia alguma vez teve nome”… O Tico já não comunica com o Teco e diz um colega meu, do “outro lado da linha”:
– Arménia, vai ao Google!
– Via Láctea!
Se eu estiver em aula ou em reunião, é melhor deixar o petiz jogar. Mas a coisa só funciona mesmo para aulas ou reuniões, se eu estiver simplesmente “no computador”, já posso ser interrompida:
– Mãe, mãe olha, olha, já tenho catorziliões de dinheiros, estou rico! – acho que vou colocar estas na caixa dos palavrões.
Por estes dias, a forma que arranjámos para encurtar distâncias com os amiguinhos e ter algum tempinho para nós e para o nosso trabalho/teletrabalho, é deixá-los jogar em rede. E lá se ligam 2-4 pelo Hangouts enquanto jogam. O meu piqueno é um “must” a jogar Roblox! Eu, que não entendo NADA de jogos, já compreendo alguns dos encarregados de educação dos meus alunos:
– Não percebo como o meu filho tem negativa a TIC, ele é tão bom em computadores!
Às vezes, ainda me chama para eu fazer umas traduções do inglês no jogo. É uma algazarra cá em casa e eu não me importo NADA. Polícias e ladrões, não sei quem mata quem, mas todos ressuscitam. De jogos de computador e da PlayStayion o melhor é não experimentar sequer, corro um sério risco de gostar daquilo, que é bem pior.
Nisto, passam das 19:00h, tenho outra panela ao lume. Já respondi a 40 mails, recebi 100 notificações no Facebook e respondi a 20 contactos no Gestor de Páginas. Subi e desci umas 10 vezes à garagem (algumas delas porque me esqueci de “anotar” o recado na ida), embalei umas quantas encomendas e o estafeta já passou.
Estou cansada. Raios, tenho de fazer o jantar. Penso na saga de enfiar a comida na boca do meu demónio. NÃO! Vou mandar vir pela UberEats. Eu como qualquer coisa e ele gosta “daquilo”. Acabo com os tachos, arrumo a cozinha e… tenho a infeliz ideia de me deitar no sofá!
Os sofás têm aquele malfadado poder magnético que nos apega. O petiz vem para cima de mim, senta-se em cima da minha pança. Queixo-me que estou cansada mas, lamentavelmente, nenhuma criança sabe o significado da palavra “cansado”, muito menos em tempos de confinamento.
– Olha, não queres ver comigo o vídeo de Estudo do Meio? É tão bonito e é relaxante! São só 16 minutos… – não me convence, mas sai vitorioso: aceito ver um filme na NetFlix. Mas uma das exigências é que não posso sequer pegar no telemóvel, que “estamos em família”.
Numa noite destas calhou-me a série “A Cãodemia”, duns cães fofos que falam, tão fofos que ele só percebe que adormeci já o 3.º episódio ia alto. Raios partam o sofá! A custo lá vamos ao banho, meto-o junto comigo e despacho o serviço depressa.
– Mãe vais ler?! – e lá tem de ser.