– Maaaaaias! Maaaaaias! Maias! – gritava a canalha toda quando o Compasso saía. Éramos bem mais de 30 miúdos, todos expectantes. Quando não nos “davam as Maias”, ficávamos revoltados e, antes de seguirmos os Homens da Cruz, retrucávamos:
– Mamai-as! Mamai-as!
Ó Tempo, não digo que voltes para trás, mas que bom seria que certas tradições não se perdessem… O meu filho tem agora quase 5 anos e na aldeia dos meus pais contam-se pelos dedos de uma mão os piquenos que têm a sua idade. Ele nunca virá a perceber o quanto éramos felizes no Dia de Páscoa…
As visitas do Compasso são semelhantes em quase todo o nosso país, mas na aldeia dos meus pais, ou pelo menos na Paróquia de Carrazedo de Montenegro, eram diferentes: eram uma verdadeira festa para as crianças (e até para alguns mais taludos!). Enquanto o Padre Barroso foi vivo, esta tradição cumpria-se (mais do que) religiosamente, ou não trouxesse ele consigo uma data de laranjas para consumir durante mais de 2 meses e amealhasse uma bela quantia (sim, que ele gostava muito da “Folhinha de Alface”, como chamava à nota de 20$ no peditório da missa).
Eu nasci em 75 e da minha idade havia uma criança em quase todas as casas da aldeia. Como era comum aos domingos, e principalmente no Dia de Páscoa, a minha mãe vestia-me sempre a roupa mais nova e bonita. Lembro-me de andar de saia xadrez, plissada a partir da anca, e com collants brancos de malha grossa, bem quentinhos (rais’parta, quem inventou a lycra voile?!).
A Bênção das Casas começava num extremo da aldeia e a tradição mandava que, assim que o Compasso saísse de cada casa, a miudagem gritasse, reclamando Maias. Depois, os donos aproximavam-se das janelas ou varandas e lançavam pelos ares presentes para a canalha apanhar no chão. Era a pura da loucura!
A grande maioria atirava rebuçados e frutos secos (castanhas, amêndoas e avelãs), mas havia muitos que ofereciam laranjas e moedas de menor valor. Nesse dia conseguíamos arrecadar várias dezenas de rebuçados Mata-Ratos e até alguns rebuçados espanhóis, como chamávamos aos maiores que tinham apenas uma ponta. Os Mata-Ratos eram uns rebuçados pequeninos cujo papel tinha a cara de dois miúdos e, nas pontas, uma espécie de flores-asteriscos. Chamavam-se “Catraios” e os papéis tinham várias cores (azul, verde, vermelho, amarelo), acho que consoante o seu sabor.
Chegávamos a rebolar pelo chão. Havia também uma data de marmanjos que assistiam à bulha: inicialmente como se nada fosse com eles, mas quando lançavam laranjas ou moedas, num instante se metiam ao barulho. A maioria conseguia apanhar as laranjas no ar e acabavam por cair sobre a pequenada. Nunca vi ninguém queixar-se! Tá a andar! Podem é imaginar como ficavam os meus lindos collants ao final do dia, já para não falar das nódoas negras por mais de uma semana.
Havia despiques para ver quem arrecadava mais Maias no seu saco plástico. Claro que, no meio da miudagem, havia sempre um ou outro chico-esperto… Naquela confusão tínhamos de estar muito atentos porque havia sempre um artola, munido de uma navalhita pequena, daquelas de capar grilhos, para furar o nosso saco e apoderar-se das nossas safras!
Quando ofereciam frutos secos era um desconsolo. Avelãs, vá que não vá, mas amêndoas e castanhas todos nós tínhamos em casa! Além disso, as amêndoas davam trabalho a partir e rilhar castanhas (que “roer” em Trás-os-Montes é coisa só dos ratos) fazia ganhar piolhos (dizia-se), por isso, rejeitávamo-las e ficavam pelo chão.
Naquela época, as laranjas tinham, para nós transmontanos, um valor especial pois eram frutos muito pouco comuns na nossa zona fria. Por isso, imagino eu, que se colocava uma laranja sob uma nota num prato para oferecer ao pároco.
No final do dia, como éramos Meninos de Cidade de segunda a sexta-feira, na viagem de regresso a Chaves, eu e o meu irmão fazíamos o inventário do material dos nossos sacos (e não havia lugar a partilhas!). Tínhamos um Mini Morris vermelho (lindo!) e chegávamos a fazer montinhos de rebuçados em cima do tampo da mala traseira. No saco, trazíamos sempre algumas moedas pretas, mas apanhar uma de “dois e quinhentos” era um verdadeiro triunfo!
A nossa felicidade era, verdadeiramente, indescritível! Nascemos numa família humilde, os meus pais nunca nos compravam rebuçados, chicletes ou guloseimas, e aqueles Mata-Ratos sabiam-nos pela vida! Melhores, só mesmo os rebuçados que os nossos tios nos traziam de França nas férias do Verão (ena… agora lembrei-me dos Ovos Kinder, que ainda não havia em Portugal, e daquele chocolate preto da marca Poulain, que tinham um desenho de um cavalo… salivei!).
Durante vários anos íamos sempre Beijar a Cruz a casa da nossa tia Leontina, afamada costureira, pois a nossa casa ainda estava em construção e morávamos num anexo que não tinha sequer condição de “Casa”. Assim que o compasso se aproximava da casa da Tina (que tratávamos por “tu”), esgueirávamo-nos escadas acima e perfilávamo-nos na sala de jantar. O padre entrava, acompanhado de uns pares de homens (um que pegava na nota, outro carregava as laranjas, um a cruz e os outros faziam sei lá mais o quê), e proferia uma frase que acabava em “Aleluia! Aleluia!” (confesso, sofro de Amnésia Religiosa!).
Assim que os homens viravam as costas, num instante, nós também descíamos as escadas. Em baixo, reclamávamos as Maias da nossa tia, junto de toda a miudagem. Da janela, ela atirava os rebuçados e (querida!) fazia sempre pontaria na nossa direcção. Como podem imaginar, aquilo mais parecia uma cena de rugbi, com a criançada toda em cima das nossas orelhas.
Quando cheguei aos meus 12 anos, a minha mãe começou a resmungar comigo, dizendo que “ficava mal uma menina grande andar naqueles preparos”. Ai, que maldade! Hoje, sinto que me roubou das coisas mais lindas da minha infância com essa estupidez. Agora que escrevo este texto, penso que afinal os marmanjos que andavam sempre à nossa volta, não se rebolavam connosco no chão para disputar Mata-Ratos pelo mesmo motivo parvo!
Poucos anos mais tarde, o Padre Barroso faleceu e o Padre José Maria, actual Pároco da freguesia, não era “tão apreciador de laranjas” como o seu antecessor… E a Visita da Cruz começou a ser feita por elementos da aldeia.
Actualmente, o Compasso continua a entrar em todas as casas e na nossa também. Continuamos a colocar a laranja e a nota no prato e a minha mãe compra, religiosamente, um saco de rebuçados… Mas já não se fazem Mata-Ratos! Agora são mais chiques, são daqueles rebuçados moles, tipo SUGUS (como os que os meus tios traziam de França!).
Na rua, já não está um bando de miúdos aos gritos, apenas uns 3-4, acompanhados de adultos zelosos. Pior: além de haver poucas crianças, parece, estupidamente, que pedir as Maias é coisa apenas dos mais pobres… A minha mãe não vai à janela, desce as escadas, com o saco de rebuçados já aberto, onde ela própria mete a mão para os repartir por toda a gente, pequenos e grandes…
Raios! Eu nunca vou experimentar a deliciosa sensação de atirar rebuçados da janela aos miúdos! Ó Tempo, volta para trás, que eu prometo poupar todas as moedas pretas durante, pelo menos, 3 meses!
– Mamai-as! Mamai-as!
Ó Tempo, não digo que voltes para trás, mas que bom seria que certas tradições não se perdessem… O meu filho tem agora quase 5 anos e na aldeia dos meus pais contam-se pelos dedos de uma mão os piquenos que têm a sua idade. Ele nunca virá a perceber o quanto éramos felizes no Dia de Páscoa…
As visitas do Compasso são semelhantes em quase todo o nosso país, mas na aldeia dos meus pais, ou pelo menos na Paróquia de Carrazedo de Montenegro, eram diferentes: eram uma verdadeira festa para as crianças (e até para alguns mais taludos!). Enquanto o Padre Barroso foi vivo, esta tradição cumpria-se (mais do que) religiosamente, ou não trouxesse ele consigo uma data de laranjas para consumir durante mais de 2 meses e amealhasse uma bela quantia (sim, que ele gostava muito da “Folhinha de Alface”, como chamava à nota de 20$ no peditório da missa).
Eu nasci em 75 e da minha idade havia uma criança em quase todas as casas da aldeia. Como era comum aos domingos, e principalmente no Dia de Páscoa, a minha mãe vestia-me sempre a roupa mais nova e bonita. Lembro-me de andar de saia xadrez, plissada a partir da anca, e com collants brancos de malha grossa, bem quentinhos (rais’parta, quem inventou a lycra voile?!).
A Bênção das Casas começava num extremo da aldeia e a tradição mandava que, assim que o Compasso saísse de cada casa, a miudagem gritasse, reclamando Maias. Depois, os donos aproximavam-se das janelas ou varandas e lançavam pelos ares presentes para a canalha apanhar no chão. Era a pura da loucura!
A grande maioria atirava rebuçados e frutos secos (castanhas, amêndoas e avelãs), mas havia muitos que ofereciam laranjas e moedas de menor valor. Nesse dia conseguíamos arrecadar várias dezenas de rebuçados Mata-Ratos e até alguns rebuçados espanhóis, como chamávamos aos maiores que tinham apenas uma ponta. Os Mata-Ratos eram uns rebuçados pequeninos cujo papel tinha a cara de dois miúdos e, nas pontas, uma espécie de flores-asteriscos. Chamavam-se “Catraios” e os papéis tinham várias cores (azul, verde, vermelho, amarelo), acho que consoante o seu sabor.
Chegávamos a rebolar pelo chão. Havia também uma data de marmanjos que assistiam à bulha: inicialmente como se nada fosse com eles, mas quando lançavam laranjas ou moedas, num instante se metiam ao barulho. A maioria conseguia apanhar as laranjas no ar e acabavam por cair sobre a pequenada. Nunca vi ninguém queixar-se! Tá a andar! Podem é imaginar como ficavam os meus lindos collants ao final do dia, já para não falar das nódoas negras por mais de uma semana.
Havia despiques para ver quem arrecadava mais Maias no seu saco plástico. Claro que, no meio da miudagem, havia sempre um ou outro chico-esperto… Naquela confusão tínhamos de estar muito atentos porque havia sempre um artola, munido de uma navalhita pequena, daquelas de capar grilhos, para furar o nosso saco e apoderar-se das nossas safras!
Quando ofereciam frutos secos era um desconsolo. Avelãs, vá que não vá, mas amêndoas e castanhas todos nós tínhamos em casa! Além disso, as amêndoas davam trabalho a partir e rilhar castanhas (que “roer” em Trás-os-Montes é coisa só dos ratos) fazia ganhar piolhos (dizia-se), por isso, rejeitávamo-las e ficavam pelo chão.
Naquela época, as laranjas tinham, para nós transmontanos, um valor especial pois eram frutos muito pouco comuns na nossa zona fria. Por isso, imagino eu, que se colocava uma laranja sob uma nota num prato para oferecer ao pároco.
No final do dia, como éramos Meninos de Cidade de segunda a sexta-feira, na viagem de regresso a Chaves, eu e o meu irmão fazíamos o inventário do material dos nossos sacos (e não havia lugar a partilhas!). Tínhamos um Mini Morris vermelho (lindo!) e chegávamos a fazer montinhos de rebuçados em cima do tampo da mala traseira. No saco, trazíamos sempre algumas moedas pretas, mas apanhar uma de “dois e quinhentos” era um verdadeiro triunfo!
A nossa felicidade era, verdadeiramente, indescritível! Nascemos numa família humilde, os meus pais nunca nos compravam rebuçados, chicletes ou guloseimas, e aqueles Mata-Ratos sabiam-nos pela vida! Melhores, só mesmo os rebuçados que os nossos tios nos traziam de França nas férias do Verão (ena… agora lembrei-me dos Ovos Kinder, que ainda não havia em Portugal, e daquele chocolate preto da marca Poulain, que tinham um desenho de um cavalo… salivei!).
Durante vários anos íamos sempre Beijar a Cruz a casa da nossa tia Leontina, afamada costureira, pois a nossa casa ainda estava em construção e morávamos num anexo que não tinha sequer condição de “Casa”. Assim que o compasso se aproximava da casa da Tina (que tratávamos por “tu”), esgueirávamo-nos escadas acima e perfilávamo-nos na sala de jantar. O padre entrava, acompanhado de uns pares de homens (um que pegava na nota, outro carregava as laranjas, um a cruz e os outros faziam sei lá mais o quê), e proferia uma frase que acabava em “Aleluia! Aleluia!” (confesso, sofro de Amnésia Religiosa!).
Assim que os homens viravam as costas, num instante, nós também descíamos as escadas. Em baixo, reclamávamos as Maias da nossa tia, junto de toda a miudagem. Da janela, ela atirava os rebuçados e (querida!) fazia sempre pontaria na nossa direcção. Como podem imaginar, aquilo mais parecia uma cena de rugbi, com a criançada toda em cima das nossas orelhas.
Quando cheguei aos meus 12 anos, a minha mãe começou a resmungar comigo, dizendo que “ficava mal uma menina grande andar naqueles preparos”. Ai, que maldade! Hoje, sinto que me roubou das coisas mais lindas da minha infância com essa estupidez. Agora que escrevo este texto, penso que afinal os marmanjos que andavam sempre à nossa volta, não se rebolavam connosco no chão para disputar Mata-Ratos pelo mesmo motivo parvo!
Poucos anos mais tarde, o Padre Barroso faleceu e o Padre José Maria, actual Pároco da freguesia, não era “tão apreciador de laranjas” como o seu antecessor… E a Visita da Cruz começou a ser feita por elementos da aldeia.
Actualmente, o Compasso continua a entrar em todas as casas e na nossa também. Continuamos a colocar a laranja e a nota no prato e a minha mãe compra, religiosamente, um saco de rebuçados… Mas já não se fazem Mata-Ratos! Agora são mais chiques, são daqueles rebuçados moles, tipo SUGUS (como os que os meus tios traziam de França!).
Na rua, já não está um bando de miúdos aos gritos, apenas uns 3-4, acompanhados de adultos zelosos. Pior: além de haver poucas crianças, parece, estupidamente, que pedir as Maias é coisa apenas dos mais pobres… A minha mãe não vai à janela, desce as escadas, com o saco de rebuçados já aberto, onde ela própria mete a mão para os repartir por toda a gente, pequenos e grandes…
Raios! Eu nunca vou experimentar a deliciosa sensação de atirar rebuçados da janela aos miúdos! Ó Tempo, volta para trás, que eu prometo poupar todas as moedas pretas durante, pelo menos, 3 meses!