“Tudo começou na cozinha de um apartamento (…)”, um dia irei escrever assim esta estória que vos conto. Sim, que um dia saio daqui e terei um espaço aberto ao público, onde farei muito mais do que doces, agridoces e licores. Planeio muito esse dia, sonho. Que nunca percamos a nossa capacidade de sonhar, mesmo nos tempos mais difíceis.
Quando esse tempo chegar, espero vir a recrutar colaboradores. Um dos requisitos básicos do anúncio será: “Saber descascar fruta com casca fina”. Já para não falar dos vossos filhos, quantos de vocês cumpririam esta exigência?! Poucos, muito poucos. Sei tão bem do que vos falo... Quantos desperdiçam parte do morango junto com a raminha?
Não me lembro da minha mãe me descascar as maçãs em pequena. Lembro-me sim, de me ralhar e da célebre frase:
– “Não temos porcos em casa!”.
Estes tempos serão, para todos, de grande aprendizagem e reflexão. Não falo apenas do desaproveitamento de comida, mas também no quanto desperdiçamos tempo e dinheiro a comprar coisas que depois se apresentam inúteis e um verdadeiro “entulho” nas nossas casas.
Há um pequeno filme na Net que costumo mostrar aos meus alunos, chama-se “A História das coisas” (https://youtu.be/7qFiGMSnNjw). A dada altura, a autora diz que na América têm agora casas muito maiores e mais recheadas que os seus pais e avós tinham nos anos 50. Contudo, a felicidade dos americanos tem vindo a declinar desde essa época. Porque será?! Porque valorizamos o menos importante nas nossas vidas… As coisas!
Em Janeiro deste ano dei uma reviravolta completa aos meus armários. É um exercício que faço todas as estações, mas desta vez fiz de forma mais radical. Desfiz-me de ⅓ da minha roupa e até de bolsas. Ofereci a quem precisa e outras coloquei no contentor. Que interessa termos uma peça, às vezes de marca, se não a vestimos há anos e não pensamos vesti-la tão cedo?! Façam esse exercício. Experimentem a sensação leve de ter espaço nos cabides e gavetões.
E na cozinha?! Quando começamos a ter uma vida independente, a “montar casa”, muitas vezes entramos nos supermercados e acabamos por comprar aquela dúzia de iogurtes que traz um recipiente plástico com tampa, supostamente, de fecho hermético. O raio do recipiente lá vai ficando por casa, mesmo que a tampa nunca feche bem. E canecas?! Aos poucos, fazemos autênticas colecções de canecas e copos em casa, mesmo quando acabamos por usar sempre os mesmos, os que ficam mais à frente na prateleira. E aquele recipiente para guardar o ovo cozido?! Muito perfeitinho mas, na verdade, nunca cosemos ovos para guardar no frigorífico e, se cosemos, não nos lembramos deste belo espécime guardado algures.
Façam também esse exercício. Eu já o fiz há muito. Tenho uma cozinha grande, mas cá em casa tem de haver espaço para guardar frascos, tampas e mais uma data de coisas para as minhas compotas. Aqueles objectos que não valiam um chavo, reciclei. Outros, acabei por colocar nos caixotes da roupa. Não sei se fiz bem, mas imagino que as pessoas que precisam de roupa, também precisem deste tipo de artigos. Se souberem um local melhor para o fazer, digam-me, que eu faço isto muitas vezes.
Se me custa fazer?! Não. Acreditem, acho que a minha casa vale mais quando está vazia de coisas. Fica logo mais arejada, respiro melhor e a limpeza é MUITO mais fácil. Hoje, se vejo uns iogurtes no supermercado que oferecem uma lancheira, fujo, compro logo outros. Também tenho um problema “grave” com papéis: se os guardo hoje, é provável que daqui a 1-2 anos os recicle. Viva a Era Digital! Tenho uma estrutura de pastas no PC onde facilmente encontro tudo.
Não sou acumuladora. Os meus pais são e ficam danados comigo quando lhes digo que, quando eu mandar, vou fazer uma limpeza lá em casa. A minha mãe diz que sou bem maluca e eu respondo-lhe “Graças a Deus!”. Não vale a pena ter a casa cheia de coisas que “um dia podem servir para alguma coisa” se, quando precisamos delas, muitas vezes, nem nos lembramos sequer que existem. Desprendam-se!
No meu quarto da aldeia, há poucos anos, ainda havia umas bonecas espanholas, daquelas com grandes vestidos, chapéus e cabelos aos cachos. Estavam pousadas em cima do guarda-vestidos. Quando era pequena e mas ofereceram, a minha mãe não me deixava brincar com elas, não fosse eu dar-lhes cabo dos vestidos e despentear os cabelos! Eram peças de decoração que se pousavam ao centro na cama e em cima das cadeiras de quarto, que todas as mobílias antigas traziam. Nunca tive apego a essas bonecas. Agora, eu, mulher feita, mãe de filhos, com aquela bonecada no quarto?! Comecei a pedir à minha mãe para as colocar no lixo.
– Oh, tão lindas! É mal-empregue…
– Lindas?! Esses cabelos devem ter mais pó que o tapete da entrada! – meti-as num saco e disse para as ditar fora. Ora, passado uns tempos diz-me ela:
– Dei as bonecas à Bira, ela ficou toda contente!
WTF?! A Bira é nossa vizinha e tem uma casa muito pobre, cheia de tralhas e bibelots da “Loja dos 300”. Ora, a minha mãe ainda foi estragar mais a vida da vizinha! Oferecer sim, mas coisas com préstimo e em bom estado. Já ensinei o piqueno a oferecer os brinquedos encostados. Muitos ficaram na escolinha da Pré e ele consegue fazê-lo com felicidade.
* Não li o “Ensaio sobre a Cegueira”. Fui ler o que diz sobre o livro do nosso Nobel na Wikipédia e achei que a narrativa deve ser terrivelmente actual. Talvez um livro a ler (ou NÃO) por estes dias. Digam-me de vossa justiça, quem já o leu! Estou a precisar de literatura cá em casa…