Odeio chícharros!

Odeio chícharros!

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Antes de passar a descrever esta repulsa visceral que me consome, informo os meus cyber leitores que em Trás-os-Montes se chama Chícharro ao Feijão-Frade. Em verdadeiro transmontanês deve pronunciar-se “Tchítcharro”, com acento no “i”, senão deixa de ser feijão e passa a ser peixe.

Hoje, passei ali no Take-Away do costume e a Sra. Dores tinha, mais uma vez, aquela Salada de Atum com Molho Verde e este projecto de feijão de cara bonita. Confesso que até acho o prato saboroso, mas é muito raro comê-lo. Quando o faço, desenvolvo um sentimento estranho que me revolve as entranhas, começo a destilar fel, tal é o ódio que sinto por chícharros!

Passo a explicar o motivo deste meu sentimento.

Em plenos anos 80, quando éramos miúdos e começámos a “ganhar corpo” para trabalhar (expressão irónica, pois tanto eu como o meu irmão sempre fomos franzinas e verdadeiros paus-de-virar-tripa), meninos de cidade de segunda a sexta-feira, passámos a trabalhar duro na agricultura ao fim-de-semana. A nossa estreia foram os malvados chícharros.

Um iluminado qualquer anunciou que plantar leguminosas (feijões, tremoços, etc.) nos terrenos melhorava a constituição da terra. Lembro-me de ouvir o meu pai dizer que “fazia reter o Azoto na terra”. Nem ele, nem ninguém, sabia se aquela treta era verdade ou não, nem mesmo o que era o tal do Azoto. Raios partam o Azoto! Nem hoje quero saber o que isso é!

Verdade é que o meu pai durante uns 5-7 anos semeou chícharros “à manta” em quase todos os terrenos que tínhamos. “Semear à manta” é mais ou menos como dar milho às galinhas, mas de forma mais generosa e assim pelos ares, depois passava-se o tractor a lavrar a terra.
A parte da sementeira era a única tarefa que o meu pai realizava, o resto do trabalho era meu, do meu irmão e da minha mãe. Enquanto isso, ele dedicava-se a “outras tarefas (superiores) que só os homens fazer na agricultura” (há destas coisas nesta actividade, pelo menos havia!).

Não demorava muito tempo e, quase logo após a sementeira, o raio dos chícharros nasciam todos (TODOS)! Acabávamos por ter chícharros em todo o lado, menos nas vinhas, e começava o tormento…

Primeiro tínhamos de “sachar os chícharros”, tarefa que consistia em arrancar as ervas daninhas (milhãs, cinchos, joio, estende-braço e a malvada da grama!) e “arralentar” os chícharros, que era arrancar alguns pés quando eles nasciam muito juntos.

Odeio enxadas! Faço qualquer outra tarefa na agricultura de bom grado, mas cavar… Please, NÃO! Fazíamos 3 leiras: a minha mãe era a que mais trabalhava e se despachava mais, depois o meu irmão que, por ser mais velho, tinha a obrigação de ir à minha frente. Esta tarefa levava-nos vários fins-de-semana seguidos e, para maior desconsolo nosso, quando terminávamos as últimas leiras do terreno, o raio das ervas já voltavam a crescer nas primeiras! (*ódio*)

Depois, vinha a apanha das vagens. Nas primeiras antas a tarefa não era problemática, mas quando os chícharros se lembravam de trazer todos vagens secas ao mesmo tempo, era um “ai Jejus”. Enquanto apanhávamos, não chegávamos a levantar as costas e, a dada altura, começava aquela dor horrível nas cruzes, tal como dizia uma vizinha nossa: “doía a rilada” (ril, rim… doíam os rins!).

Depois colocavam-se as vagens secas ao sol. Como na altura ainda tínhamos a casa em construção, dispúnhamos grandes toldos estendidos na placa de cimento do último piso. Começava então outra tarefa que era um desconsolo: malhar as cascas. Não que fosse propriamente difícil, pois consistia em dar pancadas aos feijões para se soltarem das cascas, mas eram horas de triste estio…

Naquela época, ao domingo, na aldeia dos meus pais faziam-se grandes bailaricos no Centro Cultural e Recreativo (da cultura sueca, note-se!). Transmontano que se preze é bailarino, dança ao som da cassete, do altifalante, do conjunto musical e até da banda filarmónica! Ora, enquanto nós malhávamos os malditos chícharros, logo ali, bem perto da nossa casa, dançava-se:
“Fomos para a praia, fomos tu e eu,
Mas que grande bronca nos aconteceu!
A minha camisa, o vestido teu,
Quando à noitinha nada apareceu!” (…)
(Autor pimba, que agora não me recorda o nome e nem vale a pena recordar!)

Estas músicas consumiam-me até à alma, tal era a vontade de dar um pezinho de dança.

A partir dos meus 11-12 anos, os nossos fins-de-semana na aldeia passaram a ser um pesadelo que acordava às 5:00 da manhã, na época de verão, para continuar pelo resto do dia, até quase ao escurecer. Em plenos anos 80, pelo facto de trabalharmos até mesmo aos domingos e de sol-a-sol, diziam que o meu pai era comunista, afinal “nem sequer deixava os filhos irem à missinha”!

A saga do chícharro continuava. Depois de malhar era necessário levantar as palhas ao vento. Num dia algo ventoso, a minha mãe colocava um balde na cabeça e deitava aos poucos a mistura sobre um toldo no chão. As palhas voavam e ficavam apenas os feijões com algumas cascas mais pesadas, que eu tinha de tirar e soltar dos chícharros.

Mas a tarefa ainda não acabava aqui… O raio do chícharro é um feijãozinho medíocre que ganha imenso bicho. Depois de nos livrarmos das cascas, era necessário escolhê-los, mas dessa tarefa eu já conseguia baldar-me!
A minha mãe levava os chícharros para Chaves, onde os tentava escolher ao longo da semana. Estendia um pano sobre a alcatifa da sala e, com os óculos da costura na ponta do nariz, lá ia tirando os feijões bichados. Lembro-me sempre de ela dizer, enquanto aproximava e afastava os óculos do chão:
– “Ai, se eles fossem assim grandes como eu agora os vejo!”.

Enquanto isso, eu, manhosa, mas aluna MUITO aplicada, arranjava sempre uma solução para que a minha mãe não se atrevesse sequer a pedir a minha ajuda: fazia exercícios de Matemática. Vivam os sistemas de equações lineares, a trigonometria, a fórmula resolvente, etc. e tal! Agora que me lembro desses tempos e reflicto um pouco mais, os chícharros deveriam ser uma das razões por eu ser boa aluna e ter 18-19 a Matemática… Fazer exercícios de Matemática era também solução para eu me esquivar aos afazeres de casa, como lavar loiça, limpar o pó, descascar batatas, etc., etc.

Lembro-me de colhermos vários “alqueires” de feijão-frade (alqueire, arroba, pipa, almude, cântaro, etc., unidades de medida que sempre me fizeram uma enorme confusão na cabeça, já que só fui ensinada a funcionar em Kg e L).
O pior sentimento que me acudia na época era que, depois de tanto esforço, a minha mãe vendia os chícharros a uns míseros 120$/kg, i.e., 0.60€, credo!

Até hoje, eu própria nunca comprei um único pacote de feijão-frade, seja seco ou até daquele cozido. Lá em casa, há já vários anos que não se semeiam estes feijões (felizmente!), nem sei mesmo quanto custa actualmente 1kg no supermercado. Seja lá o preço que for, o feijão-frade devia ser pago ao preço do ouro! Por trás de cada saco de feijão-frade está certamente uma história (longa) como esta.

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