Eu tive um melro

Eu tive um melro

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“Eu tive um melro
que era um achado.
De dia dormia,
à noite comia
e cantava o fado”

Já o disse antes, repito: ando maravilhada com o Spotify e o uso que tenho dado aos auriculares do meu telemóvel. Quando vou caminhar, se me apercebo que não os levo comigo, dou meia volta e venho a casa buscá-los.

Quando ouço esta música dos Deolinda, lembro-me sempre das histórias do nosso melro, não que a letra tenha, de todo, algo a ver com as minhas memórias. Lembro-me do quanto éramos felizes a apanhar grilos na aldeia para alimentar o nosso melro citadino!

De segunda a sexta-feira morávamos no Caneiro, em Chaves, e, durante uns 15 anos, tivemos um melro numa gaiola (escandalosamente feia) na varanda do meu quarto. Era feita em madeira e rede fina de galinheiro e tinha uma espécie de rolo (a que chamávamos chouriço), no qual o bicho podia esticar mais as pernas e onde, no Verão, a minha mãe punha uma pequena bacia plástica para ele ir a banhos. Sempre que eu acordava de manhã, tinha o melro a olhar pra mim no poleiro junto da minha janela, cuja persiana eu nunca baixava. Quando a minha mãe tinha a máquina de costura no meu quarto, junto a essa janela, também ele passava os dias a admirar a minha mãe. Era apaixonado por ela (e não por mim!). Na época do cio das aves, quando a minha mãe ia à varanda, o bicho vinha para o chouriço pavonear-se para ela e até lhe fazia a dança do acasalamento!

Cantava muito bem. Sei que começava a fazê-lo de madrugada, talvez às 5-6 horas da manhã na Primavera-Verão. Mas a vizinhança nunca se queixou, todos nos habituámos à cantoria.

Nos seus primeiros anos, devia ter eu uns 6-7 anos, a nossa mãe incitou-nos a ir apanhar grilos aos fins-de-semana, para dar de comer ao pássaro que, ao que ela dizia, era um dos manjares preferidos desta espécie. Hoje não me atrevo a fazer mal a um grilo, pegar neles até me causa uma certa repulsa mas, na altura, tínhamos uma (in)cultura diferente.

Não sei precisar qual a caixa que usávamos para colocar os grilos, sei que lhe fazíamos uns furos na tampa e lá ia eu e meu irmão apanhar grilos. Eu sempre tive algum jeito para ajuntar as “massas” e, num instante mais canalha se juntava a nós. Íamos para um terreno baldio muito próximo da aldeia. No início, pegávamos numa palhinha de joio e chiscávamos na toca até que lá saia o bichinho. Os grilos machos são lindos, têm umas asas com um tom amarelado. As grilas são mais barrigudas, desajeitadas e todas pretas. Só os machos cantam.

Com o auxílio do resto da pequenada começámos a aperfeiçoar a técnica de apanhar grilos… Normalmente, juntavam-se a nós apenas rapazes, alguns daqueles do “feitio reguila”. Descobriram então que se dessem uma mijadela para a toca o grilo saía logo! Brilhante! O problema era que ao fim de 2-3 caçadas a “fonte” secava… Eis que o meu irmão teve uma ideia genial: usar a embalagem plástica do vinagre Vatel, aquela que era totalmente plástica, transparente, mole e que só precisávamos de cortar o bico para o vinagre sair. Depois de vazias, portávamos-lhe a parte de cima, enchíamos de água e depois tapávamos com uma rolha de cortiça.

Eu confesso que me dava mais gozo andar a chiscar na toca com a palhinha, mas esguichar água com o frasco do vinagre para o buraquinho era muito mais eficiente. Trazíamos sempre muitas dúzias de grilos que, ao longo da semana, a minha mãe ia lançando para dentro da gaiola do melro para ele fazer uma verdadeira festa.

Passados poucos anos, começamos a deixar de achar bem apanhar grilos e a ter pena deles. Acabámos por também educar os nossos pais nesse sentido. Hoje, acho até um crime ter qualquer tipo de pássaro preso em gaiolas! Naqueles tempos, além do melro tínhamos também canários, um deles merece que eu, um dia, faça uma publicação só para ele.

O melro deixou de comer grilos e passou a comer, além da ração usual, carne. Éramos nós que tínhamos de a partir em pedacinhos, a minha mãe trazia-a do talho e chamava-lhe “bofe”, que eu acho que era o pulmão de vaca ou porco, não sei precisar.

Actualmente, no nosso quintal da aldeia não se mata nem um caracol, mesmo quando eles atacam os nossos morangos! Sempre que vou cortar os ruibarbos aparecem resmas de caracóis nas abas destas plantas. Junto-os numa bacia e levo-os para um terreno baldio próximo da nossa casa, sempre na esperança que eles não regressem, que se comportem mesmo como caracóis! Dizem por aí que há quem os coma, mas na nossa zona ninguém parece apreciar o petisco do “escargot”… Desde que começámos a ter gatos, no quintal também deixaram de aparecer lagartixas e sapos, mas estes sempre foram tratados como lordes pela minha mãe, por comerem “a bicharada má”.

Lembro-me das noites de Verão na aldeia e do ecoar do canto dos grilos. Na altura, também havia na aldeia um prado, um lamaçal sem dono, onde as rãs coaxavam toda a santa noite. Hoje, com os pesticidas e herbicidas já quase não se vê uma toca de um grilo, quanto mais ouvi-los! O Aquecimento Global fez secar o prado da aldeia e por lá se construiu o Centro Cultural e Recreativo (da cultura sueca, note-se!) e um campo de jogos em cimento. Saímos à noite, não se ouvem nem grilos nem rãs e eu quase posso jurar que até o céu antes tinha mais estrelas!

Segue a hiperligação da música que deu o mote à publicação: https://youtu.be/qNw16J10ZMQ

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